Criptoativos no mundo insolvencial português
Abr/2022
O mundo nunca observou tanta evolução e inovação tecnológicas como nos últimos anos. Quando pensamos em tecnologia, rapidamente associamos a dispositivos que, através de alguma engenharia, conseguem tornar as nossas vidas mais ágeis, cómodas, acessíveis ou simplesmente divertidas. Por outro lado, as nossas vidas continuam e continuarão a ser pautadas por relações socioeconómicas, nas quais o dinheiro é rei…pelo menos por enquanto.
Já ninguém ignora vocábulos como Blockchain, Criptomoeda, NFT, Exchange (e muitas mais poderia aqui enunciar), no entanto, a sua introdução, com critério, nas muitas conversas do quotidiano é algo ainda em desenvolvimento. Ora, se esta introdução é algo que observaremos de forma gradual e, apesar de tudo, lenta, não poderemos ignorar os desafios de teor jurídico que daí resultam.
As criptomoedas têm sido a estrela da companhia no que toca aos criptoativos (possivelmente por serem, de todos, o primeiro conceito a surgir), devendo-se muita da sua popularidade à sua função financeira dupla: por um lado, apresentam-se como meio de investimento com expectativa de altos lucros[1]; por outro, assumem um papel de pagamento entre os vários utilizadores (aqui destaca-se, não só, a possibilidade de transações entre carteiras de criptomoedas, mas também de proceder a pagamentos através dos sistemas de multibanco[2]). Com efeito, se a primeira função nos remete para matérias relativas a valores mobiliários, em que a criptomoeda possa ser assemelhada à figura jurídica das ações, na segunda função deparamo-nos com o desafio de a assemelhar à moeda fiduciária.
Em Portugal, à data de redação do presente artigo, os ativos virtuais não têm curso legal[3], pelo que, nos termos do art.º 550.º do Código Civil, não podem as criptomoedas ser consideradas como meio de cumprimento de obrigações pecuniárias, ou seja, como meio de pagamento. Se, por um lado, este entendimento é relativamente claro de um ponto de vista estritamente jurídico, por outro, não podemos ignorar que o crescimento do número de utilizadores neste mercado tem conduzido a uma pressão no sentido de viabilizar a aceitação pecuniária das criptomoedas. Daqui resulta que, entre utilizadores, começam a ser cada vez mais frequentes transações aparentemente pecuniárias, operadas exclusivamente por meio de criptomoedas.
Pese embora não exista ainda regulação fiscal expressa relativamente a esta matéria e, em termos obrigacionais, não se encontre enquadramento legal para a aceitação de criptomoedas como meio de pagamento, merece a devida nota a abertura cada vez maior das autoridades nacionais à realidade dos criptoativos. Nessa medida, o Banco de Portugal, no desempenho das suas atribuições de prevenção do BCFT[4], é a entidade responsável pela aprovação do exercício de atividades relacionadas com criptoativos, como sejam: “serviços de troca entre ativos virtuais e moedas fiduciárias ou entre um ou mais ativos virtuais; serviços de transferência de ativos virtuais; serviços de guarda ou guarda e administração de ativos virtuais ou de instrumentos que permitam controlar, deter, armazenar ou transferir esses ativos, incluindo chaves critpográficas privadas”[5].
No mundo dos criptoativos podemos ainda destacar os NFT’s (Non-Fungible Tokens). Tratam-se, como o próprio nome indica, de representações de ativos não fungíveis e resultam da criação de um certificado digital com o objetivo de garantir a autenticidade e/ou propriedade de um determinado ficheiro, como prova de originalidade e exclusividade, tudo com recurso à tecnologia blockchain. Com efeito, enquanto as criptomoedas assentam em realidades fungíveis, associadas a uma ideia de transação em maior ou menor número de tokens[6] iguais ou semelhantes (com uma verdadeira função de troca), os NFT’s foram pensados para traduzir no mundo digital a ideia de escassez que existe no mundo físico[7]. Esta ideia de escassez está associada à garantia de exclusividade e autenticidade, o que já conduziu a negócios de valores astronómicos (o NFT mais caro de sempre[8] atingiu o valor de 80,9 milhões de euros!).
Perante o notório crescimento da popularidade dos criptoativos e de uma introdução cada vez mais vincada no quotidiano, é-nos indispensável refletir sobre o tema de uma perspetiva patrimonial, através da qual surgem pertinentes interrogações, desde logo, qual a viabilidade de apreensão de criptoativos no âmbito judicial, nomeadamente, no âmbito insolvencial? Por um lado, denote-se a dificuldade de classificação jurídica dos criptoativos e, por outro, mesmo que se revele aquela ultrapassada, colocam-se dificuldades ao nível técnico, no que se refere à apreensão.
“Perante o notório crescimento da popularidade dos criptoativos e de uma introdução cada vez mais vincada no quotidiano, é-nos indispensável refletir sobre o tema de uma perspetiva patrimonial”
No que concerne à integração dos criptoativos no conceito de massa insolvente, a redação do art.º 46.º, nº1 do CIRE garante essa abertura, ao referir que a massa “(…) abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência (…)”. Atendendo a que não se vislumbra que os criptoativos se enquadrem nos elencos dos artos 736.º e 737.º do Código de Processo Civil, como bens impenhoráveis, deve haver lugar à devida apreensão. Diferente entendimento se impõe em situação em que o salário do trabalhador seja pago em criptomoedas, na medida em que será de aplicar a impenhorabilidade parcial prevista no art.º 738.º do referido CPC.
De facto, uma análise meramente legalista remete para a apreensão deste tipo de bens, nos termos do art.º 36.º, nº1, g) do CIRE, no entanto, a sua viabilidade prática é reduzida. Pela ausência de regulação dos criptoativos, dificilmente encontraremos qualquer reflexão dos mesmos nos elementos da contabilidade apreendidos por força da declaração da insolvência, por um lado e, por outro, não sendo a sua entrega ao processo voluntária, por parte do devedor, que entidade deve ser interpelada para proceder ao bloqueio dos ativos? Nesta fase, cabe compreender como pode operar a detenção destes bens digitais.
A detenção de criptoativos pode verificar-se em Hot Wallets ou Cold Wallets. Uma Wallet é uma carteira de armazenamento, à qual é atribuída uma Public Key (endereço digital/eletrónico da carteira), sendo que o utilizador acede à mesma através de Private Keys (equivalentes a senhas de acesso). Uma Hot Wallet é uma carteira de armazenamento à qual o utilizador acede online e, regra geral, as operações entre este tipo de carteiras ocorrem por intermédio de uma Exchange, que funciona, não só, como uma plataforma de negociação (entre utilizadores), mas também como meio de troca de criptoativos por dinheiro e vice-versa. Este tipo de carteiras é, normalmente, de custódia terceirizada, ou seja, a guarda segura das Private Keys é da responsabilidade de um terceiro, neste caso, a Exchange. As Cold Wallets são carteiras de armazenamento disponíveis offline, regra geral através de um dispositivo hardware (como uma pen drive) e são carteiras sem custódia terceirizada, ou seja, o próprio utilizador é responsável pelas suas chaves privadas.
Cada tipo de carteira observa os seus prós e contras, na ótica do seu detentor, no entanto, na ótica das autoridades que decretam medidas de apreensão por força da insolvência, o método de armazenamento conduz a efeitos práticos muito distintos. Uma Hot Wallet permitirá ao Administrador da Insolvência solicitar à entidade que detém a custódia (Exchange) que proceda ao bloqueio desses ativos e, no limite, que faculte o acesso direto aos mesmos. Já uma Cold Wallet, atendendo ao seu caráter desconectado e não custodiado, inviabiliza qualquer ordem de apreensão semelhante, exceto ao próprio devedor.
Também pela dificuldade de identificação dos criptoativos armazenados em Cold Wallets, no último 31 de março a ECON (Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários) e a LIBE (Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos) do Parlamento Europeu, aprovaram novas regras no âmbito do novo Anti-money laundering package[9], que tem como objetivo reforçar as regras europeias em matéria de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Na nova proposta, prevê-se que todas as transações relativas a criptoativos tenham de incluir informação sobre a origem do ativo e o seu beneficiário, incluindo transações que envolvam carteiras não custodiadas, com o objetivo de garantir o rastreamento de todas as transações com criptoativos e o bloqueio de transações suspeitas.
Sem prejuízo do esforço regulatório europeu, é necessário refletir sobre a sua aplicabilidade num plano prático. Neste momento, nenhuma entidade nacional dispõe de poderes de apreensão de ativos digitais, exceto por suspeitas de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, no caso do Banco de Portugal, pelo que motivações meramente patrimoniais e de satisfação dos credores, como o sejam as apreensões por força de processo executivo ou insolvencial, não têm qualquer colhimento prático. Impõe-se uma regulação pragmática sobre os criptoativos, que permita uma articulação imediata com as entidades que detêm a sua custódia, por um lado, permitindo a sua legal atividade para que, por outro, se criem mecanismos que as vinculem a disponibilizar aos agentes do direito os meios necessários à efetiva apreensão dos bens (de resto, como acontece com as entidades bancárias, relativamente às diversas contas que sejam titularidade dos devedores).
Naturalmente, o panorama atual contribui para um convite permanente à sonegação de valores. No entanto, mesmo equacionando a possibilidade de apreensão efetiva destes criptoativos, não podemos ignorar as dificuldades técnicas que os Administradores irão enfrentar, no que concerne à satisfação dos credores. Quanto às criptomoedas, certamente o caminho mais razoável passará pela conversão imediata em dinheiro, prestando cumprimento à liquidação dos bens da massa, no entanto, essa conversão exige um conhecimento técnico, operando através do sistema de uma Exchange. Por outro, no caso dos NFT’s, a estratégia passará, certamente, pela sua venda, o que, mais uma vez, ocorre diretamente através da blockchain. Num caso ou noutro, os meios tradicionais de venda judicial estão amplamente afastados.
Não sendo exigível ao devedor que proceda à liquidação dos criptoativos antes da sua apreensão e, muito menos, depois desta (por força da perda de poderes de administração), será exigível ao Administrador da Insolvência que disponha de conhecimentos e meios técnicos para operar tal liquidação?
A realidade dos ativos digitais é um dos novos grandes desafios que se impõem aos juristas e que abrange as mais diversas disciplinas. “Enfim, sendo as projeções das criptomoedas transversais ao Direito, renovam-se diariamente as suas manifestações. É o caso, por exemplo, do direito societário, do direito do mercado de capitais, do direito contabilístico, do direito da insolvência, do direito do consumo, do direito processual, e até do direito das sucessões”[10].
O processo de insolvência é, pela sua natureza de execução universal, um meio processual ao qual não é alheio o comportamento do devedor em matéria patrimonial, tanto numa perspetiva de má gestão, ainda que negligente, como de má-fé e ruína patrimonial deliberada. É neste sentido que nos deparamos com consequências legais da insolvência como a perda de poderes de administração ou a possibilidade de recorrer a institutos como a resolução de negócios em benefício da massa insolvente. Ora, neste sentido, perante a clara facilidade, para o comum cidadão, de gerir a sua vida patrimonial com base em criptoativos (em especial, criptomoedas) e perante a ausência de regulação, é notória a facilidade de sonegação de valores aos credores.
Cabe ainda referir que este fenómeno de crescimento do mercado de criptoativos nos coloca numa posição sensível na qual o devedor pode, juridicamente, face ao seu património “regular”, ser considerado insolvente e, num plano digital, dispor de ativos de montantes consideravelmente superiores ao passivo. Naturalmente, cabe ao devedor cuja insolvência é requerida demonstrar a sua solvabilidade, no entanto, serão de aceitar os criptoativos no cômputo de tal (in)solvabilidade? A resposta merece coerência: admitindo a viabilidade da sua apreensão, teremos de admitir a sua valoração para efeitos de cálculo de solvabilidade.
Há muito trabalho a fazer em matéria de criptoativos e ao mundo jurídico cabe oferecer respostas adequadas à prática quotidiana.
(Artigo publicado Nota Informativa de abril de 2022 da APDIR – Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação)
Rafael Parreira
Solicitador e Fundador da P&A Solicitadores
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[1] Esta expectativa conduziu a um aumento exponencial do mercado de criptomoedas. A título de exemplo, a plataforma CoinMarketCap indicava, no início de abril de 2022, que o “Market Cap”, ou seja, a capitalização de mercado, das 18897 criptomoedas por si seguidas, era de 1.860.726.713.381 dólares.
[2] Empresas como Binance ou Cripto.com, disponibilizam aos seus utilizadores cartões multibanco que permitem o pagamento, através das suas carteiras de criptomoedas em qualquer terminal- operação que ocorre através de uma conversão imediata entre a(s) criptomoeda(s) do utilizador e a divisa corrente de cada país, de forma a operar o pagamento.
[3] Conforme esclareceu o Banco de Portugal, em comunicado que pode ser consultado em: https://www.bportugal.pt/page/moedas-virtuais
[4] Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo
[5] https://www.bportugal.pt/page/registo-de-entidades-que-exercem-atividades-com-ativos-virtuais
[6] “Token”, na gíria dos criptoativos, é considerada uma representação digital de um ativo.
[7] A título de exemplo, uma obra de arte física será, pela sua natureza, exclusiva e única, enquanto um ficheiro artístico digital pode ser múltiplas vezes reproduzido. O NFT permite garantir que o ficheiro em causa é único, autêntico e tem determinado proprietário (por isto mesmo se associaram os NFT’s à ideia de “arte digital”, tendo já alcançado outras realidades, como o mundo futebolístico, com a reprodução de NFT’s relativos a clubes, jogadores e até bilhetes para jogos, com a introdução do fan-token).
[8] “The Merge”, da autoria de Pak.
[9] Comunicado relativo à aprovação, disponível em: https://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20220324IPR26164/crypto-assets-new-rules-to-stop-illicit-flows-in-the-eu
[10] José Engrácia Antunes, “As Criptomoedas”, pág. 186 e 187, disponível em: https://portal.oa.pt/media/133308/jose-engracia-antunes.pdf
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O mundo nunca observou tanta evolução e inovação tecnológicas como nos últimos anos. Quando pensamos em tecnologia, rapidamente associamos a dispositivos que, através de alguma engenharia, conseguem tornar as nossas vidas mais ágeis, cómodas, acessíveis ou simplesmente divertidas. Por outro lado, as nossas vidas continuam e continuarão a ser pautadas por relações socioeconómicas, nas quais o dinheiro é rei…pelo menos por enquanto.
Já ninguém ignora vocábulos como Blockchain, Criptomoeda, NFT, Exchange (e muitas mais poderia aqui enunciar), no entanto, a sua introdução, com critério, nas muitas conversas do quotidiano é algo ainda em desenvolvimento. Ora, se esta introdução é algo que observaremos de forma gradual e, apesar de tudo, lenta, não poderemos ignorar os desafios de teor jurídico que daí resultam.
As criptomoedas têm sido a estrela da companhia no que toca aos criptoativos (possivelmente por serem, de todos, o primeiro conceito a surgir), devendo-se muita da sua popularidade à sua função financeira dupla: por um lado, apresentam-se como meio de investimento com expectativa de altos lucros[1]; por outro, assumem um papel de pagamento entre os vários utilizadores (aqui destaca-se, não só, a possibilidade de transações entre carteiras de criptomoedas, mas também de proceder a pagamentos através dos sistemas de multibanco[2]). Com efeito, se a primeira função nos remete para matérias relativas a valores mobiliários, em que a criptomoeda possa ser assemelhada à figura jurídica das ações, na segunda função deparamo-nos com o desafio de a assemelhar à moeda fiduciária.
Em Portugal, à data de redação do presente artigo, os ativos virtuais não têm curso legal[3], pelo que, nos termos do art.º 550.º do Código Civil, não podem as criptomoedas ser consideradas como meio de cumprimento de obrigações pecuniárias, ou seja, como meio de pagamento. Se, por um lado, este entendimento é relativamente claro de um ponto de vista estritamente jurídico, por outro, não podemos ignorar que o crescimento do número de utilizadores neste mercado tem conduzido a uma pressão no sentido de viabilizar a aceitação pecuniária das criptomoedas. Daqui resulta que, entre utilizadores, começam a ser cada vez mais frequentes transações aparentemente pecuniárias, operadas exclusivamente por meio de criptomoedas.
Pese embora não exista ainda regulação fiscal expressa relativamente a esta matéria e, em termos obrigacionais, não se encontre enquadramento legal para a aceitação de criptomoedas como meio de pagamento, merece a devida nota a abertura cada vez maior das autoridades nacionais à realidade dos criptoativos. Nessa medida, o Banco de Portugal, no desempenho das suas atribuições de prevenção do BCFT[4], é a entidade responsável pela aprovação do exercício de atividades relacionadas com criptoativos, como sejam: “serviços de troca entre ativos virtuais e moedas fiduciárias ou entre um ou mais ativos virtuais; serviços de transferência de ativos virtuais; serviços de guarda ou guarda e administração de ativos virtuais ou de instrumentos que permitam controlar, deter, armazenar ou transferir esses ativos, incluindo chaves critpográficas privadas”[5].
No mundo dos criptoativos podemos ainda destacar os NFT’s (Non-Fungible Tokens). Tratam-se, como o próprio nome indica, de representações de ativos não fungíveis e resultam da criação de um certificado digital com o objetivo de garantir a autenticidade e/ou propriedade de um determinado ficheiro, como prova de originalidade e exclusividade, tudo com recurso à tecnologia blockchain. Com efeito, enquanto as criptomoedas assentam em realidades fungíveis, associadas a uma ideia de transação em maior ou menor número de tokens[6] iguais ou semelhantes (com uma verdadeira função de troca), os NFT’s foram pensados para traduzir no mundo digital a ideia de escassez que existe no mundo físico[7]. Esta ideia de escassez está associada à garantia de exclusividade e autenticidade, o que já conduziu a negócios de valores astronómicos (o NFT mais caro de sempre[8] atingiu o valor de 80,9 milhões de euros!).
Perante o notório crescimento da popularidade dos criptoativos e de uma introdução cada vez mais vincada no quotidiano, é-nos indispensável refletir sobre o tema de uma perspetiva patrimonial, através da qual surgem pertinentes interrogações, desde logo, qual a viabilidade de apreensão de criptoativos no âmbito judicial, nomeadamente, no âmbito insolvencial? Por um lado, denote-se a dificuldade de classificação jurídica dos criptoativos e, por outro, mesmo que se revele aquela ultrapassada, colocam-se dificuldades ao nível técnico, no que se refere à apreensão.
“Perante o notório crescimento da popularidade dos criptoativos e de uma introdução cada vez mais vincada no quotidiano, é-nos indispensável refletir sobre o tema de uma perspetiva patrimonial”
No que concerne à integração dos criptoativos no conceito de massa insolvente, a redação do art.º 46.º, nº1 do CIRE garante essa abertura, ao referir que a massa “(…) abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência (…)”. Atendendo a que não se vislumbra que os criptoativos se enquadrem nos elencos dos artos 736.º e 737.º do Código de Processo Civil, como bens impenhoráveis, deve haver lugar à devida apreensão. Diferente entendimento se impõe em situação em que o salário do trabalhador seja pago em criptomoedas, na medida em que será de aplicar a impenhorabilidade parcial prevista no art.º 738.º do referido CPC.
De facto, uma análise meramente legalista remete para a apreensão deste tipo de bens, nos termos do art.º 36.º, nº1, g) do CIRE, no entanto, a sua viabilidade prática é reduzida. Pela ausência de regulação dos criptoativos, dificilmente encontraremos qualquer reflexão dos mesmos nos elementos da contabilidade apreendidos por força da declaração da insolvência, por um lado e, por outro, não sendo a sua entrega ao processo voluntária, por parte do devedor, que entidade deve ser interpelada para proceder ao bloqueio dos ativos? Nesta fase, cabe compreender como pode operar a detenção destes bens digitais.
A detenção de criptoativos pode verificar-se em Hot Wallets ou Cold Wallets. Uma Wallet é uma carteira de armazenamento, à qual é atribuída uma Public Key (endereço digital/eletrónico da carteira), sendo que o utilizador acede à mesma através de Private Keys (equivalentes a senhas de acesso). Uma Hot Wallet é uma carteira de armazenamento à qual o utilizador acede online e, regra geral, as operações entre este tipo de carteiras ocorrem por intermédio de uma Exchange, que funciona, não só, como uma plataforma de negociação (entre utilizadores), mas também como meio de troca de criptoativos por dinheiro e vice-versa. Este tipo de carteiras é, normalmente, de custódia terceirizada, ou seja, a guarda segura das Private Keys é da responsabilidade de um terceiro, neste caso, a Exchange. As Cold Wallets são carteiras de armazenamento disponíveis offline, regra geral através de um dispositivo hardware (como uma pen drive) e são carteiras sem custódia terceirizada, ou seja, o próprio utilizador é responsável pelas suas chaves privadas.
Cada tipo de carteira observa os seus prós e contras, na ótica do seu detentor, no entanto, na ótica das autoridades que decretam medidas de apreensão por força da insolvência, o método de armazenamento conduz a efeitos práticos muito distintos. Uma Hot Wallet permitirá ao Administrador da Insolvência solicitar à entidade que detém a custódia (Exchange) que proceda ao bloqueio desses ativos e, no limite, que faculte o acesso direto aos mesmos. Já uma Cold Wallet, atendendo ao seu caráter desconectado e não custodiado, inviabiliza qualquer ordem de apreensão semelhante, exceto ao próprio devedor.
Também pela dificuldade de identificação dos criptoativos armazenados em Cold Wallets, no último 31 de março a ECON (Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários) e a LIBE (Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos) do Parlamento Europeu, aprovaram novas regras no âmbito do novo Anti-money laundering package[9], que tem como objetivo reforçar as regras europeias em matéria de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Na nova proposta, prevê-se que todas as transações relativas a criptoativos tenham de incluir informação sobre a origem do ativo e o seu beneficiário, incluindo transações que envolvam carteiras não custodiadas, com o objetivo de garantir o rastreamento de todas as transações com criptoativos e o bloqueio de transações suspeitas.
Sem prejuízo do esforço regulatório europeu, é necessário refletir sobre a sua aplicabilidade num plano prático. Neste momento, nenhuma entidade nacional dispõe de poderes de apreensão de ativos digitais, exceto por suspeitas de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, no caso do Banco de Portugal, pelo que motivações meramente patrimoniais e de satisfação dos credores, como o sejam as apreensões por força de processo executivo ou insolvencial, não têm qualquer colhimento prático. Impõe-se uma regulação pragmática sobre os criptoativos, que permita uma articulação imediata com as entidades que detêm a sua custódia, por um lado, permitindo a sua legal atividade para que, por outro, se criem mecanismos que as vinculem a disponibilizar aos agentes do direito os meios necessários à efetiva apreensão dos bens (de resto, como acontece com as entidades bancárias, relativamente às diversas contas que sejam titularidade dos devedores).
Naturalmente, o panorama atual contribui para um convite permanente à sonegação de valores. No entanto, mesmo equacionando a possibilidade de apreensão efetiva destes criptoativos, não podemos ignorar as dificuldades técnicas que os Administradores irão enfrentar, no que concerne à satisfação dos credores. Quanto às criptomoedas, certamente o caminho mais razoável passará pela conversão imediata em dinheiro, prestando cumprimento à liquidação dos bens da massa, no entanto, essa conversão exige um conhecimento técnico, operando através do sistema de uma Exchange. Por outro, no caso dos NFT’s, a estratégia passará, certamente, pela sua venda, o que, mais uma vez, ocorre diretamente através da blockchain. Num caso ou noutro, os meios tradicionais de venda judicial estão amplamente afastados.
Não sendo exigível ao devedor que proceda à liquidação dos criptoativos antes da sua apreensão e, muito menos, depois desta (por força da perda de poderes de administração), será exigível ao Administrador da Insolvência que disponha de conhecimentos e meios técnicos para operar tal liquidação?
A realidade dos ativos digitais é um dos novos grandes desafios que se impõem aos juristas e que abrange as mais diversas disciplinas. “Enfim, sendo as projeções das criptomoedas transversais ao Direito, renovam-se diariamente as suas manifestações. É o caso, por exemplo, do direito societário, do direito do mercado de capitais, do direito contabilístico, do direito da insolvência, do direito do consumo, do direito processual, e até do direito das sucessões”[10].
O processo de insolvência é, pela sua natureza de execução universal, um meio processual ao qual não é alheio o comportamento do devedor em matéria patrimonial, tanto numa perspetiva de má gestão, ainda que negligente, como de má-fé e ruína patrimonial deliberada. É neste sentido que nos deparamos com consequências legais da insolvência como a perda de poderes de administração ou a possibilidade de recorrer a institutos como a resolução de negócios em benefício da massa insolvente. Ora, neste sentido, perante a clara facilidade, para o comum cidadão, de gerir a sua vida patrimonial com base em criptoativos (em especial, criptomoedas) e perante a ausência de regulação, é notória a facilidade de sonegação de valores aos credores.
Cabe ainda referir que este fenómeno de crescimento do mercado de criptoativos nos coloca numa posição sensível na qual o devedor pode, juridicamente, face ao seu património “regular”, ser considerado insolvente e, num plano digital, dispor de ativos de montantes consideravelmente superiores ao passivo. Naturalmente, cabe ao devedor cuja insolvência é requerida demonstrar a sua solvabilidade, no entanto, serão de aceitar os criptoativos no cômputo de tal (in)solvabilidade? A resposta merece coerência: admitindo a viabilidade da sua apreensão, teremos de admitir a sua valoração para efeitos de cálculo de solvabilidade.
Há muito trabalho a fazer em matéria de criptoativos e ao mundo jurídico cabe oferecer respostas adequadas à prática quotidiana.
(Artigo publicado Nota Informativa de abril de 2022 da APDIR – Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação)
Rafael Parreira
Solicitador e Fundador da P&A Solicitadores
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[1] Esta expectativa conduziu a um aumento exponencial do mercado de criptomoedas. A título de exemplo, a plataforma CoinMarketCap indicava, no início de abril de 2022, que o “Market Cap”, ou seja, a capitalização de mercado, das 18897 criptomoedas por si seguidas, era de 1.860.726.713.381 dólares.
[2] Empresas como Binance ou Cripto.com, disponibilizam aos seus utilizadores cartões multibanco que permitem o pagamento, através das suas carteiras de criptomoedas em qualquer terminal- operação que ocorre através de uma conversão imediata entre a(s) criptomoeda(s) do utilizador e a divisa corrente de cada país, de forma a operar o pagamento.
[3] Conforme esclareceu o Banco de Portugal, em comunicado que pode ser consultado em: https://www.bportugal.pt/page/moedas-virtuais
[4] Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo
[5] https://www.bportugal.pt/page/registo-de-entidades-que-exercem-atividades-com-ativos-virtuais
[6] “Token”, na gíria dos criptoativos, é considerada uma representação digital de um ativo.
[7] A título de exemplo, uma obra de arte física será, pela sua natureza, exclusiva e única, enquanto um ficheiro artístico digital pode ser múltiplas vezes reproduzido. O NFT permite garantir que o ficheiro em causa é único, autêntico e tem determinado proprietário (por isto mesmo se associaram os NFT’s à ideia de “arte digital”, tendo já alcançado outras realidades, como o mundo futebolístico, com a reprodução de NFT’s relativos a clubes, jogadores e até bilhetes para jogos, com a introdução do fan-token).
[8] “The Merge”, da autoria de Pak.
[9] Comunicado relativo à aprovação, disponível em: https://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20220324IPR26164/crypto-assets-new-rules-to-stop-illicit-flows-in-the-eu
[10] José Engrácia Antunes, “As Criptomoedas”, pág. 186 e 187, disponível em: https://portal.oa.pt/media/133308/jose-engracia-antunes.pdf
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